Escrito nos Átomos

Alexander Carneiro
6 min readSep 3, 2020

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O avanço constante da Ciência deixa cada vez menos espaço no mundo para os mistérios. Não somente a Ciência em si, mas o tal do pensamento científico. Em relação aos mistérios divinos, podemos dividir a história da humanidade, pelo menos até agora, em três momentos distintos. A maior parte dos primeiros milênios de nossa história — ou pré-história — era tomada pelo Animismo. Acreditávamos que tudo era alma, tudo era espírito. Logo, tudo era mistério. Havia diálogo para se ter com com todos os seres vivos e vários dos objetos ao nosso redor. Todos queriam contar uma história: pessoas, lobos, sapos, samambaias, orquídeas, pedras, o vento e a água. Então, nós começamos a aprender a jogar sementes no chão e esperar pelo hora de sua colheita e, a partir daí, quando começamos a reproduzir em nossas bocas o poderoso gosto do poder humano sobre a natureza, nossos deuses também se tornaram humanos. Todos os outros seres perderam a voz, parcialmente ou completamente. Um tempo depois disso, começamos a adorar Rá, Zoroastres, Zeus, Enki, Ianna, Shiva e outros. Mais alguns séculos e através de exercícios imperialistas ocidentais, tudo acabou virando só “Deus”.

Entra a Era Moderna e, de repente, nem mais Deus há. Nietzsche resume esse período com sua mais famosa frase e o grande diálogo entre a humanidade e todos os espíritos do mundo se resume agora a uma sala vazia com o o ser humano se olhando no espelho. Ainda assim, somos fascinados pelos mistérios. Na verdade, parece que a revolução científica só nos fez ficar ainda mais fascinados com a descoberta dos segredos do universo. Nossos métodos mudaram, se tornaram tecnológicos, precisados diagramados, registrados, mas os objetivos são os mesmos. Um interessante exercício é comparar mapas feitos na idade média com os mapas do início da época das grandes navegações. Os mapas medievais eram completamente preenchidos, quase como se os cartógrafos tivessem aversão ao espaço em branco. O desconhecido é um erro técnico que não precisa ser considerado.

Mapa do Mundo, Beato de Liébanna, 776 E.C.

Enquanto isso, os mapas da renascença se resumem a algumas linhas tortas em um mar de espaço em branco. O desconhecido tornara-se empolgante e o ocidente inteiro estava empenhado na empreitada de descobrir. Descobrir o que? Descobrir tudo. Através do método científico, desejávamos zerar todas as dúvidas. Para o bem da Ciência, a cada resposta obtida, mais perguntas surgiam. A realidade é um fractal, à princípio caótico, porém tornamos-a organizada quando temos a chance

Costa brasileira, Joan Blaeu, 1640

Faço essa introdução para falar sobre o conceito de destino. Livre-arbítrio é algo que nós, enquanto humanos ocidentais do século XXI, prezamos e desejamos preservar. Até mesmo na Bíblia o livre-arbítrio está assegurando como direito divino. A ciência, porém, não é obrigada a concordar com a Bíblia e nem com nossos desejos humanos ingênuos e, quanto mais ela parece avançar, menos espaço parece haver para nosso conceito de “liberdade verdadeira”. O que significa isso, afinal? Ser livre?

A primeira coisa que nos prende de nossa liberdade total é nossa biologia. Somos uma consciência presa fisicamente em um corpo de carne, ossos e sangue. Na verdade, até onde sabemos, essas coisas nem são assim tão separáveis, pois até hoje não temos notícias concretas de uma consciência sem corpo. De qualquer forma, nosso corpo é o primeiro fator a nos impôr limitações. Não podemos voar, atravessar paredes, enxergar o ultravioleta o correr mais rápido que uma onça. Para alguns de nós, as opções são ainda mais limitadas, alguns não podem ver, andar falar…

O Determinismo científico é um conceito que diz que, uma vez desvendadas algumas das principais fórmulas da realidade, toda a história do universo, o passado, presente e futuro, se tornará somente uma questão de problema matemático. Tudo o que já aconteceu e irá acontecer poderá ser encontrado após um sinal matemático de igual. A partir do big bang, tudo é pré-determinado, e só existe um caminho possível para a realidade. Nossos antepassados olhavam para as estrelas, para as cartas, para os búzios e para os deuses em busca de resposta para o futuro. Hoje em dia, nós olhamos para dentro dos átomos e para nós mesmos, como se nosso futuro estivesse escrito em algum código, uma combinação desses dois. Onde reside o resto de nossa liberdade?

O já frequentemente citado historiador Yuval Harari complementa o determinismo com outro conceito igualmente bizarro quando olhado muito de perto: a aleatoriedade. Segundo ele, quando nossos cérebros passam pelo escrutínio científico, só conseguimos encontrar esses dois caminhos.

Até onde vai o melhor de nosso entendimento científico, determinismo e aleatoriedade dividem o bolo entre eles, sem deixar nenhuma dividem o bolo entre eles, sem deixar uma só migalha para a “liberdade”. A palavra sagrada “liberdade” acaba se revelando, assim como “alma”, um termo vazio que não carrega nenhum significado discernível. Livre-arbítrio só existe em histórias imaginárias inventadas pelos humanos.

Yuval antecipa nossos contra-argumentos: “mas eu me sinto livre! Sinto vontade de fazer alguma coisa, então vou lá e faço. Eu escolho o que quero fazer”. Apesar dessa frase ser emocionalmente carregada e facilmente identificável, para Yuval, ela é facilmente refutada através de simples conceitos científicos.

O fato é que não escolhemos nossas vontades. Não escolhemos nossos pensamentos. Eles aparecem em nossa consciência através de processos que nós, pessoalmente, não conseguimos entender, e isso explica o fato de acharmos que nós somos completamente responsáveis por eles. Existem correntes elétricas passando pelos meus neurônios, hormônios sendo liberados, fatores ambientais sendo contabilizados e uma biologia evoluída em milhões de anos trabalhando. Todas simultaneamente gerando minhas vontades.

Na realidade, o que existe é apenas um fluxo de consciência, e os desejos surgem e passam em seu interior, mas não existe um eu que seja dono desses desejos. É por isso que não há sentido em perguntar se escolho meus desejos determinística, aleatória ou livremente.

Isso pode soar extremamente complicado, mas é surpreendentemente fácil testar essa ideia. Na próxima vez em que um pensamento surgir na sua cabeça, pare e pergunte a si mesmo “Por que me ocorreu este pensamento específico? Será que eu decidi um minuto atrás ter esse pensamento, e só então o pensei? Ou ele simplesmente surgiu na minha cabeça., sem minha permissão ou instrução? Se realmente sou o senhor de meus pensamentos e minhas decisões, posso decidir não pensar sobre absolutamente nada durante os próximos sessenta segundos?”. Tente isso e veja o que acontece.

Em minha visão particular, completamente pré-determinada pela soma de minhas experiências, a relação entre consciência, corpo e liberdade é paradoxal. Por um lado, corpo e consciência nos permitem experienciar sensações às quais gostamos de chamar de liberdade, mas também nos impedem de experienciar tal liberdade em outros âmbitos. Caso conseguisse desprender minha consciência de meu corpo, passeando pelo universo apenas como um ser de puro pensamento, ainda seria eu livre, ou estaria mais amarrado ainda à minha mente? Inversamente, se eu fosse puramente um corpo sem consciência, certamente não me sentiria livre, primeiramente pois eu não teria o conceito de liberdade e, depois, porque eu nem sentiria nada no fim das contas. Existência e liberdade parecem ser uma dialética conceitual. Impossível existir e ser livre. Impossível ter liberdade sem existir.

Como poderemos prever o futuro? O que resta de nossa sociedade racionalista — para o bem ou para o mal — depende de nossa capacidade de olhar anos no futuro, porém há algo sobre um futuro pré-determinado que nos apavora. Há também algo sobre um futuro completamente caótico, impossível de se prever, que é igualmente apavorizante. Será que a ciência caminha, de fato, a uma resposta total sobre o futuro? Conseguiremos ler nosso futuro nos átomos? O que vamos sentir? Quando vamos nos casar? Qual será a próxima guerra?

Um fato interessante como contraponto, talvez assunto para um texto futuro — porém isso já está decidido, só não por mim —, são as pesquisas que demonstram que, na área de “previsão de acontecimentos”, a opinião das pessoas comuns quase sempre desbanca os principais especialistas. Seja na política, economia ou nos esportes, perguntar a qualquer pessoa na rua o que ela acha sobre o que irá acontecer, geralmente, é mais certo do que perguntar a um especialista cheio de cálculos, pesquisas e estudos. Caos, ou emergência de sistemas?

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