Jogos, Educação e Hierarquia

“Você não pode só me passar uma prova?”

Alexander Carneiro
6 min readAug 20, 2020

Quando estamos buscando descobrir os efeitos de uma determinada mídia, há pelo menos dois tipos distintos que podem ser identificados. Existe o próprio efeito, — ou seja, se assisto a um filme ou leio o jornal, qual o efeito direto que aquela mídia teve em mim? — e, de maneira complementar, há o efeito percebido — ou seja, se assisto a um filme ou leio o jornal, qual o efeito que eu acho que aquela mídia teve em mim? — Ambos podem parecer semelhantes, mas pesquisas mostram que há bastante diferença entre o que sentimos/fazemos e entre o que achamos que sentimos/fazemos.

Vejamos por exemplo esta recente pesquisa da Datafolha sobre o sentimento das pessoas em relação ao uso de máscaras no Brasil durante a pandemia. É importante frisar que não se trata de uma pesquisa objetiva sobre a quantidade de pessoas usando máscara, mas sim uma pesquisa subjetiva sobre o quanto os cidadãos acham que as máscaras estão sendo usadas.

Quando perguntadas se usam a máscara quando saem de casa, 92% das pessoas responderam que sempre usam a máscara quando saem de casa. Porém, quando perguntadas sobre o quanto acham que as outras pessoas usam, apenas 52% responderam que acham que outras pessoas usam máscara quando saem de casa. Essa discrepância é um claro exemplo de um tipo de efeito de terceira pessoa, um fenômeno da comunicação que descreve quando achamos que os efeitos positivos ou negativos das mídias são mais fortes sobre as outras pessoas. De certa, forma, sempre nos sentimos certos ou idôneos ao que consideramos “conspirações” ou “manipulações”. Se eu uso máscara no que eu considero a maior parte do meu dia fora de casa, mas a retiro apenas em alguns momentos, estou muito mais apto a justificar minhas próprias ações e me considerar um usuário assíduo da máscara, porém, na visão das outras pessoas que me enxergarem em meu momento sem máscara, provavelmente entrarei na massa estatística das pessoas que não usam máscara. Isso também se relaciona com o fato de que, como primatas, odiamos ser passados a perna e, se estou fazendo algo que considero certo, mas é desconfortável e, ao mesmo tempo, vejo alguém completamente confortável, posso tender a aumentar essa imagem em minha mente, reclamando sobre como a vida é injusta e as pessoas são egoístas.

Como explica Richard Perlof:

O efeito de terceira pessoa é uma percepção individual de que a mensagem irá exercer um forte impacto nos outros e não em si. O termo ‘terceira pessoa’ deriva-se da expectativa de que a mensagem não terá grandes influências sobre o ‘eu’, ou ‘tu’, mas em ‘ele/eles’ — terceiras pessoas. Os indivíduos podem superestimar o impacto que os mass media exercem nos outros, e subestimar os efeitos da mídia em si, ou ambos.

O efeito da terceira pessoa se relaciona em certa intensidade com umapesquisa feita por Kevin O’Neill e Bill Feenstra sobre a precisão histórica percebida em jogos eletrônicos de tiro em primeira pessoa (FPS). Em seu artigo “Honestly, I Would Stick with the Books”: Young Adults’ Ideas About a Videogame as a Source of Historical Knowledge (“Honestamente, eu Prefiro Continuar com os Livros”: Opiniões de Jovens Adultos sobre Videogames como uma Fonte de Conhecimento Histórico) os dois autores fazem um experimento com uma dúzia de jovens, com diferentes experiências com jogos e diferentes níveis de conhecimento histórico, no qual esses jovens, após jogar uma sessão de Medal of Honor: Frontline, são submetidos a uma entrevista na qual respondem questões sobre sua percepção em relação à precisão histórica do jogo.

Medal of Honour: Frontline. EA Games, 2002.

Partindo da premissa de que o ensino tradicional de História em sala de aula pode frequentemente parecer enfadonho ou, simplesmente, incapaz de capturar as complexidades das vivências das pessoas da época estudada, O’Neil e Feenstra se propuseram a estudar as opiniões de estudantes sobre a obtenção de conhecimento a partir de outras mídias, mais especificamente, os videogames, e obtiveram respostas, no mínimo, inesperadas.

Estudiosos sugeriram que a popularidade de jogos históricos como Medal of Honour podem refletir uma saudade existencial de um tempo em que “a vida era mais real”, e envolvia decisões de vida ou morte. Ao mesmo tempo, porém, imergir-se em um jogo como Medal of Honour não necessariamente implica nem no entendimento e nem na credibilidade de suas representações do passado.

Em poucas palavras, o que a citação acima tenta explicar é o fato que, apesar de aceitarmos o apelo visual, histórico e representacional de jogos históricos, não necessariamente acreditamos neles ou o consideramos como fontes viáveis de conhecimento. Isso fica mais explícito quando analisamos os resultados obtidos no artigo que, surpreendentemente, mostram que jovens adultos tem uma baixa tolerância em aceitar jogos de videogame como fontes sérias de conhecimento histórico. Digo “surpreendente” pois, de todas as esferas da sociedade, jovens adultos são o último grupo do qual eu esperaria esse tipo de opinião. Um dos participantes do estudo, quando perguntado se o jogo Medal of Honour havia lhe ensinado algo sobre História, generalizou:

“Eu não acho que jogos ensinam nada sobre História, na verdade”

A maioria das opiniões ecoava esse tom. Geralmente, na melhor das hipóteses, os estudantes aceitavam a capacidade do jogo de lhes ensinar conteúdo de História, mas logo desdenhavam, assumindo que o conteúdo presente na mídia não poderia ser tão profundo, nada além do que uma guerra ou “americanos lutando contra nazistas”. É importante entender que, para a natureza do estudo, não importa tanto a quantidade real de conhecimento ensinado no jogo, mas sim o efeito percebido dos participantes.

Interessantemente, o participante que mais demonstrou entusiamo na capacidade de ensino do jogo era do grupo de selecionados que tinha mais conhecimento formal em História. O participante, reconhecendo a capacidade do jogo de criar telepresença, diz:

Bom, eu acho que ele permite que você se conecte com esse evento histórico. Mesmo em uma maneira muito superficial, você pode reviver o que aconteceu e, talvez, conseguir um sentimento mais próximo do que você jamais conseguiria sobre como era realmente estar lá.

Ainda assim, quando perguntado sobre as capacidades de ensino de História de livros, jogos e documentários, o mesmo estudante classificou os jogos como a fonte menos confiável de informação. Os autores trazem McMichael para falar sobre uma espécie de “hierarquia midiática percebida” na mente desses jovens. Por mais que eles pudessem usar seu tempo em certas mídias, continuavam enxergando-as como menos verossímeis e menos autênticas:

Havia um tipo de… hierarquia na mente dos estudantes em relação a quão precisas as diferentes representações históricas tem de ser. História na sala de aula deveria ser a mais precisa… Em seguida vinham mídias como canais de televisão pública, seguida por canais a cabo como Discovery e History Channel, que os meus estudantes viam quase como um substituto da sala de aula… Em último na hierarquia deles vinham os videogames, que apenas precisavam ser precisos o suficiente, na mente deles, para serem reconhecíveis e não tão historicamente bizarros.

Por mais que pareçamos ter certeza da cada vez maior ineficácia das salas de aulas e do ensino tradicional como práticas de aprendizado hoje em dia, parecemos ter ainda mais dificuldades em projetar e confiar em sistemas alternativos. Se esse tipo de resultado foi obtido com estudantes de ensino médio e faculdade, que tipo de resultados poderíamos esperar de professores? Será que seriam ainda mais conservadores em suas opiniões, ou será que docentes estão mais ansiosos por mudanças do que os próprios alunos? Será que também nos surpreenderíamos e veríamos a vontade dos professores de apostar em métodos diferentes?

O próprio artigo elenca muitos dos possíveis erros que pode ter cometido, em vista de suas limitações: poucos estudantes foram entrevistados (12), todos pertenciam a classes e contextos sociais semelhantes e as perguntas e a presença dos professores pode ter intimidado os participantes a tentar dar a “resposta certa”. Ainda assim, em minhas modestas experiências no projetar de novas abordagens de educação, não pude deixar de relacionar o título do artigo (Honestamente, eu Preferiria Estudar pelos Livros) com frases que já ouvi de alunos. Quando estimulados a projetar seus próprios objetivos em novas abordagens didáticas, não raramente alguns alunos respondiam com:

Você não poderia só me passar uma prova?

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