Oráculos Probabilísticos

Alexander Carneiro
6 min readAug 27, 2020

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A expressão que intitula este texto é cunhada pelo neurocientista brasileiro e principal defensor contemporâneo dos sonhos, Sidarta Ribeiro, que afirma que os sonhos são, como o título diz, oráculos probabilísticos.

O que é um sonho? Por mais que a humanidade invista tempo e dinheiro colocando médicos e cientistas para procurarem as possíveis respostas para essa pergunta, sempre parece haver um resquício de mistério. As experiências oníricas sempre acompanharam a humanidade, mudando de função de acordo com as culturas, mas sempre permanecendo em um patamar de reverência. Desde o início da modernidade e da adoração ao racionalismo, segundo Sidarta Ribeiro, os sonhos tem perdido progressivamente seu espaço na sociedade. Sejam eles profecias importantes, revelações agourentas, ou simplesmente subprodutos do dormir, há uma função que, espero eu, os sonhos nunca percam: a de janelas para áreas mais profundas de nossa mente.

O sonho é uma das experiências unificadoras da humanidade — algo que está se tornando cada vez mais raro — pois, apesar de nem todos os humanos serem capaz de sonhar, todos parecemos compreender os motivos do sonhar, mesmo que não consigamos colocar em palavras. É, afinal, algo natural, não só dos humanos, mas também de vários outros animais. Compartilhar um sonho em uma roda de conversa parece ser uma experiência inter-cultural, tanto quanto compreender o sonho dos outros que, por mais que nos pareçam estranhos, por mais que o outro possa ser diferente, sempre conseguimos identificar traços que parecem universais ao sonho. Sonhar estar caindo, sonhar estar perdido, perseguido por algo, atrasado para um compromisso, voando. Todos esses parecem elementos dignos de uma possível linguagem do sonho.

O sonho é algo de mais alta ordem, articulando memórias complexas na forma de enredos oníricos, verdadeiras simulações do ambiente e do sonhador.

Quando digo linguagem do sonho, falo com uma específica intenção. Acredito que artistas, designers, filósofos e outros podem se beneficiar de um estudo mediático do sonho. isso significa tratá-lo como o meio de comunicação que ele é, por mais que possa ser acidental. Propositalmente ou não, nosso inconsciente nos revela informações que, de outra forma, poderiam ser difíceis ou impossíveis de se obter. Curiosamente, tanto o mensageiro quando o receptor são a mesma pessoa, porém a impossibilidade da obtenção da informação por outros meios poderia ser suficiente para garantir ao sonho o status de meio de comunicação. Caso isso ainda não seja suficiente, podemos dizer com certeza que o sonho tem uma linguagem específica de comunicação, exclusiva sua, que quase todos nós conseguimos identificar. Filmes como Waking Life, A Origem e Paprika tentam tomar emprestado dos sonhos sua linguagem, criando uma metáfora de sonho, em inglês há uma palavra para isso: dreamlike, como um sonho.

Mas quais seriam essas características? O que nos faz olhar ou sentir algo e dizer “isso parece um sonho”? Acredito que os jogos, assim como os filmes, são uma ótima linguagem para a representação e simulação dos sonhos. Em busca de entender melhor os elementos linguísticos dos sonhos, trago aqui alguns jogos eletrônicos, buscando descobrir o que os fazem nos lembrar dos filmes que passam em nossas mentes enquanto dormimos.

Limbo (Playdead, 2010)

Limbo é uma história intimista que puxa referências do cinema expressionista alemão sobre um garotinho que procura sua irmã. Limbo tem uma atmosfera escura, tanto literalmente quanto metaforicamente, mas há algo de estranhamente calmo em toda a experiência, como um sonho. A fumaça constante, o filtro granulado e as animações criam um ar de sombria surrealidade. Uma criança, aparentemente comum, lidando com o que parecem ser selvagens violentos, aranhas gigantes e em cenários que, apesar de reais em teoria, parecem extremamente improváveis Tudo isso parece contribuir pra experiência quase onírica de Limbo. Uma estranha realidade, envolvida por uma atmosfera soturno, com elementos que, seja por seu posicionamento ou sua escala, nos trazem estranheza, porém familiaridade.

The Begginer’s Guide (Davey Wreden, 2015)

Davey Wreden, criador do famoso jogo The Stanley Parable, criou essa experiência extremamente experimental, na qual você, como jogador, é inserido em vários cenários e jogos incompletos desenvolvidos por um game designer de apelido Coda, amigo de Davey. Narrado pelo próprio criador do jogo, você é convidado a explorar a mente de Coda através de suas criações, simultaneamente explorando-as digitalmente. Você caminha por labirintos, corredores e tenta cumprir objetivos impossíveis. Não há tutorial, mas há um guia, uma voz que fala na sua mente, o narrador. Você é teletransportado sem cerimônia entre os diferentes cenários, em diferentes ordens cronológicas. O jogo brinca com sua ilusão de controle: você ainda pode andar e interagir com objetos, mas você não está no domínio da realidade. Transições bruscas de cenários, uma narração onipresente com um sentimento de estar sendo observado e objetivos que parecem não só surreais, mas também impossíveis de serem cumpridos. Essas características fazem de The Begginer’s Guide, com certeza, uma experiência onírica.

Off-Peak (Cosmo D, 2015)

Uma de minhas experiências mais sagradas enquanto jogador. Desenvolvido pelo músico e DJ Cosmo D, o jogo Off-Peak lhe transcende, somente para lhe colocar na pele de uma pessoa procurando por pedaços de um bilhete em uma estação de metrô. Off-Peak é literalmente uma colagem de memórias, gostos e experiências, tudo isso modelado no formato de um jogo digital com cenários surreais. Passeando pela estação de metrô, você encontra mesas com os álbuns preferidos do músico, uma sala de jogos de tabuleiro nos quais você é do tamanho dos peões e murais de graffiti enormes. O jogo não possui muito respeito pela realidade, apresentando personagens improváveis e uma tipografia diegética, como se pertencesse àquele universo fictício. Off-Peak é uma ótima promessa do que os jogos poderiam ser se não fossem tão apegados à simulação da realidade objetiva. Por se tratar de um passeio pelas memórias e psique de seu criador, por distorcer as regras do que parece ser real ou de bom-senso e por criar um estilo visual próprio, Off-Peak tem o selo de jogo dreamlike.

The Bridge (Ty Taylor, 2013)

Inspirado nas pinturas do genial artista M. C. Escher, The Bridge parte da premissa também genial de lhe colocar na tarefa de resolver quebra-cabeças de geometria paradoxal. O jogo segue o mesmo estilo visual e proposta do artista no qual se baseia, o que por si só já lhe garante uma posição onírica. Nos sonhos, as leis da realidade não precisam ser respeitadas, somente as leis de nossa mente. The Bridge usa as situações impossíveis para criar puzzles que não poderiam ser encontrados em outros jogos. Escadas que não dão em lugar nenhum, ou que levam para o seu início, elevadores que levam a florestas e quartos que são maiores dentro do que por fora. Todos esses locais podem existir nos nossos sonhos. Qualquer jogo que se beneficie disso irá trabalhar com a linguagem dos sonhos.

Superliminal (Pillow Castle, 2019)

Realidade é percepção. Nos sonhos, a percepção depende de nossa vontade. Superliminal nos leva, literalmente, para um sonho lúcido no qual somos capazes de alterar a realidade através de ilusões de ótica. No mundo real, ilusões de ótica apenas nos confundem. Em Superliminal, elas nos permitem resolver os quebra-cabeças necessários para prosseguir. Objetos mudam de tamanho, uma mesma porta pode levar a lugares diferentes e paredes são tão sólidas quanto espelhos d’água. Nos sonhos, nosso inconsciente é soberano da realidade e perspectiva não é apenas um ponto de vista, ela pode ser a lei. Superliminal, além de se passar literalmente em um sonho, nos convida a manipular a realidade e faz isso de maneira magistral, confundindo nossos sentidos como um sonho o faria.

Iluminações dúbias, realidade inconsistente, perspectivas manipuláveis, coleções de memórias, geometrias impossíveis, paisagens surreais. Essas são apenas algumas características dos sonhos. Convido-os agora a procurarem suas próprias características, sejam gerais ou específicas de seus sonhos. Nos questionar sobre nossos inconscientes pode nos fazer entender melhor a nós mesmos e à realidade. Lembrem-se de celebrar o mundo real perguntando-se constantemente: isso é um sonho?

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