Signos Híbridos

Alexander Carneiro
6 min readSep 17, 2020

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Quando pensamos nos artefatos lúdicos que caracterizamos como jogos, comumente os dividimos em duas categorias: os jogos digitais e os jogos analógicos, mas existe uma riquíssima gama de produtos culturais que se manifestam em algum lugar entre essas duas categorias.

Os chamados “jogos híbridos” não são um fenômeno exatamente recente. Já aqui escrevi um texto anteriormente sobre os jogos eletro-mecânicos que datam do começo do século passado. São um misto entre o elétrico e o analógico e prenunciavam a chegada dos famosos fliperamas, cuja moda desapareceu rapidamente uma vez que surgiram os consoles caseiros de videogame. O gênero de jogos híbridos evoluiu, ganhou esse nome e hoje em dia funde conceitos tecnológicos e de experiência contemporâneos.

Hoje em dia, algo pode ser chamado de jogo híbrido quando o artefato ou conjunto de artefatos que compõem a forma material do jogo unem ou relacionam mídias de diferentes esferas. Talvez os exemplos mais clássicos que possam ser dados de jogos híbridos são os produtos que unem o digital e o analógico. O jogo de tabuleiro XCOM: The Board Game, usa um aplicativo em um tablet (vendido separadamente) para gerenciar tempo, situações e a tensão do jogo, que é jogado em componentes tradicionais de tabuleiro. Outro exemplo dado pode ser o Koski, um brinquedo que envolve pequenos paralelepípedos de madeira que podem formar caminhos e labirintos para personagens digitais, que aparecem quando o usuário aponta a câmera do tablet para os componentes. Outros exemplos podem envolver os jogos pervasivos, que obrigam o jogador a andar por lugares reais, como os conhecidos Pokemon Go e o Ingress.

A própria definição do que é ou não é um jogo híbrido é um ponto de discussão entre acadêmicos, como no texto Games as Blends: Understanding Hybrid Games (Jogos como Blends: Entendendo Jogos Híbridos) de Kankainen et al. No artigo, três teóricos argumentam de que a explicação dos jogos híbridos não pode ser dada pelo viés tecnológico, mas sim pelo viés da experiência.

“Muitas discussões sobre a hibridez repousam na noção de que ela de algum modo envolve a mistura das tecnologias digitais e analógicas. […] Frequentemente a relação é a de que o digital é visto como uma maneira de aprimorar o analógico de alguma maneira. Essas definições veem o assunto da hibridez puramente pela lente da tecnologia. Porém, ao examinar exemplos reais com essas definições em mente, é fácil encontrar problemas. […] Ela também assume que categorias como analógico e digital são estável e coerentes, quando na verdade essa distinção pode se tornar cada vez menos útil com o passar do tempo.”

Um dos exemplos de problemas tratado no artigo é o fato de que mesmo videogames, ou seja, jogos assertadamente classificados como digitais, envolvem componentes físicos, como os controles e o próprio corpo dos jogadores. Outro local onde a definição tecnológica pode falhar é no território dos jogos de tabuleiros digitais, em que jogos de tabuleiro já existentes são completamente simulados em plataformas de computador. A definição tecnológica não os classificaria como jogos híbridos, por serem totalmente digitais, mas a experiência de se jogar um jogo de tabuleiro digital é peculiar o suficiente para se destacar da experiência tradicional de um videogame. Os autores também alertam que, muitas vezes, o conceito de jogo híbrido depende muito mais da subjetividade de quem define do que mesmo do próprio produto, já que muitos jogos que podem surgir como híbridos, ao alcançar um certo patamar de notoriedade e normalidade, podem deixar de ser vistos como híbridos.

É a partir dessa premissa que os autores do texto decidem trabalhar o conceito de jogos híbridos a partir da experiência que eles proporcionam, ao invés de puramente quais meios tecnológicos eles ativam. Kankainen e os outros autores propõem o uso da teoria das metáforas conceituais, de Lakoff e Johnson, para trabalhar o modo como os jogos híbridos criam, de certa forma, experiências híbridas:

Um dos princípios básicos da teoria de metáforas conceituais é o de que a cognição é profundamente metafórica e baseada em nossas experiências corporais. A metáfora não é simplesmente uma expressão linguística, mas sim uma característica fundamental da cognição. […] Na teoria de metáforas conceituais, uma metáfora é definida como ‘um domínio cruzado de mapeamento no sistema conceitual’. Isso é mais comumente expresso na frase: pensar em uma coisa em termos de outra coisa.

Os autores no texto defendem o uso da teoria de metáforas conceituais usando uma metáfora específica para lidar com os jogos híbridos: os blends (misturas) conceituais. Eles explicam que é possível entender as experiências criadas pelos jogos híbridos a partir da mistura de experiências que eles proporcionam. Para isso, é necessário entender a partir de quais outros artefatos/experiências esses jogos híbridos surgem, a fim de entender como os elementos anteriores são misturados nesse novo blend.

Apesar de fazerem bem em tentar encarar uma definição dos jogos híbridos enquanto um conjunto de experiências, ao meu ver, os autores erram ao sujeitar as características tecnológicas e materiais dos jogos híbridos ao segundo plano. Me atrevo a propor um outro tipo de análise que poderia emoldurar melhor as características dos jogos híbridos a partir tanto das experiências proporcionadas quanto dos meios de tecnologia usados, um sistema de observação que esteja no meio-termo e consiga combinar ambos discutidos anteriormente (seria essa uma análise híbrida dos jogos híbridos?).

Marshall Mcluhan, Hans Gumbrecht e Vilém Flusser são autores que defendem a importância da forma e da matéria para a veiculação das mensagens. Para Mcluhan, o autor mais conhecido, no longo prazo o efeito da mídia tecnológica é bem mais importante do que as mensagens que ela transmite. Para Gumbrecht e Flusser, o meio tecnológico é importante pois não somente ele dita a forma da mensagem, como também, se não fosse por ele, a mensagem nem existiria. Unindo os conceitos da teoria das materialidades da comunicação, de Gumbrecht, com a estrutura e os fundamentos da semiótica peirceana, creio ser possível entender os jogos híbridos de maneira muito mais holística, partindo de suas características físicas e técnicas até os tipos de sentimentos que podem ser provocados no jogador. A categorização dos signos na semiótica proporcionada por Peirce oferece uma estrutura rica para sistematizar os elementos de linguagem articulados nos jogos híbridos. É necessário entender os blocos básicos (signos) que compõem a linguagem nos tipos de jogos mais tradicionalmente conhecidos para, então, entender como esses blocos se reconectam no universo dos jogos híbridos.

Os conceitos de transmídia e hipermídia também podem ajudar a desvendar alguns aspectos dos jogos híbridos. Se a transmídia pode ser entendida como “uma história [sic] expandida e dividida em várias partes que são distribuídas entre diversas mídias” (Henry Jenkins em Vicente Gosciola) e se a hipermídia ou o hipertexto podem ser considerados como tendo a capacidade de criar elos simultâneos entre diferentes áreas, textos, assuntos e mídias, instantaneamente e paralelamente, então os jogos híbridos são um tipo de linguagem hiper-transmídia, não necessariamente dependentes de uma tecnologia digital.

Apesar de não ser recente, essa categoria de jogos que não existem “nem lá nem cá” no nosso espectro lúdico parece ter caminhado sem receber muita atenção, tanto da comunidade acadêmica quanto dos consumidores em potencial. A própria categoria em si é de difícil definição — o que demonstra como realmente se trata de um grupo de artefatos ricos em conceitos — e pode comumente ser usada justamente para definir aqueles jogos que não se encaixam em nenhuma categoria. Muitas vezes, os produtos híbridos se mantêm no limiar do território experimental, o que pode dificultar sua acessibilidade, incorrendo assim em sua falta de popularidade. Investir em algo assim também pode representar risco para uma grande empresa cujo objetivo seja maximizar seus lucros, o que pode ter resultado em muitos projetos de cunho híbrido que nunca viram a luz do dia. Dito isso, é importante ressaltar que no mundo do desenvolvimento de jogos, assim como em outras esferas de desenvolvimento, jogos experimentais que surgem como algo muito fora da curva, mas que, apesar disso, conseguem fazer sucesso, geralmente acabam definindo um novo tipo de lugar comum para a linguagem, deixando de serem vistos como híbridos para serem, simplesmente, um novo tipo de sub-gênero.

Seria muito triste deixar que a linguagem dos jogos permaneça para sempre em uma estagnação onde tudo o que é feito é o mais do mesmo sob uma nova roupagem. As tecnologias de hoje nos permitem expandir os limites da definição de jogo e proporcionar às pessoas experiências de graus mais elevados, sublimes e impactantes.

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